"Alegre-se! Tudo é de todos!"

sábado, 31 de julho de 2010

entrevista


[O anarquista Élisée Reclus foi o tema da dissertação da paulistana Fabíola Nunes no curso de Geografia da USP (Universidade de São Paulo), intitulada "Geografia Indigesta”. A apresentação do trabalho aconteceu em dezembro de 2009. A seguir ela conta mais detalhes desta pesquisa.]

Agência de Notícias Anarquistas > Por que você decidiu fazer uma dissertação envolvendo o anarquista Élisée Reclus?

Fabíola Nunes < Porque eu gostava dos [livros] "Evolução revolução e o ideal anarquista" (com uma biografia chuchu escrita pelo Jaime Cubero), e principalmente, "Por que os anarquistas não votam", desde antes de pensar em estudar Geografia. Enquanto fazia a faculdade, encontrei alguns livros dele em espanhol pela internet e gostei bastante. Ficava intrigada também com o fato de ninguém falar muito sobre ele na faculdade. Daí, conheci o Robledo [Mendes da Silva] do Rio de Janeiro, pronto! Ele me encheu de material sobre o cara e isso me empolgou.

ANA > Poderia fazer um resuminho do seu trabalho?

Fabíola < Fiz um levantamento sobre a história de vida de Élisée, ligada ao desenrolar do anarquismo na Europa e à constituição da Geografia enquanto ciência. Resumi demais? (risos)

ANA > Resumiu. Mas a que conclusões chegou com a sua dissertação?

Fabíola < Então, foi quando cheguei na conclusão que resolvi dar um nome ao trabalho: "Geografia indigesta". Na real Élisée trouxe prá Geografia, no momento de sua constituição como ciência moderna, as questões sociais. O objetivo da Geografia na época era, basicamente, de conhecer lugares "exploráveis" com gente "explorável" do mundo. Os geógrafos contemporâneos a ele (Ratzel e La Blache) faziam da geografia um serviço para a Alemanha e França, respectivamente, que disputavam territórios.

Reclus viajou boa parte do mundo e se envolveu nos levantes da época, como a Comuna de Paris e mesmo a Guerra Franco-Prussiana. Esse tipo de coisa dividia a opinião da comunidade científica, muita gente o apoiava, evitando que ficasse muito tempo preso. Por exemplo, escapou de ir parar na Nova Caledônia junto com a Louise Michel (29 de Maio de 1830 — 9 de Janeiro de 1905) por causa disso. No entanto, quando o cara morreu, a geografia dele "morreu junto". Tem uma passagem do julgamento de Élisée depois da Comuna de Paris que saiu no [jornal] "A Aurora" em que o geógrafo conta de uma agressão que sofreu na ocasião de um membro da Sociedade de Geografia de Paris.

Ah é, você perguntou sobre as conclusões. Bem, cheguei à conclusão de que muita coisa escrita por Reclus foi deliberadamente "esquecida" e negligenciada.

ANA > Na sua dissertação você aborda alguma coisa sobre o livro “O Homem e a Terra”?

Fabíola < Sim, sim! Selecionei alguns trechos do último volume, aquele que trata mais diretamente da sociedade e que tem críticas bem contundentes contra o Estado.

Não organizei a dissertação com base em nenhuma obra específica, mas procurei trazer os pontos que me pareceram mais importantes.

Engraçado é que me deu um trabalhão para encontrar essa obra na versão em língua espanhola. Apesar de vários compas anarcas terem essa coleção, ninguém me emprestou. (risos) Não encontrei também na biblioteca da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), fui conseguir xerocar apenas na biblioteca da FEA. Sim, a Faculdade de Economia da USP. (risos)

ANA > E você sentiu alguma dificuldade para realizar este trabalho?

Fabíola < Sim, mais especificamente em relação à bibliografia. O Plínio, editor da Imaginário, deixou prá publicar dois livros com textos do Reclus na semana em que eu defendi o trabalho -- brincadeira, claro, eu achei o máximo que um dos livros já esgotou no segundo dia de lançamento! --, assim, em português só tinha o A Evolução, a Revolução e o Ideal Anarquista (Editora Imaginário) e o Manuel Correia de Andrade [organizador de Élisée Reclus: Geografia, editora Ática], que é uma biografia que conta mais de sua vida como geógrafo. Em espanhol encontrei bastante coisa, mas demorei um tempão prá juntar tudo.

Além disso, não encontrei muita gente interessada em me orientar. (risos) Mas no fim deu tudo certo, a professora Amélia Damiani e o Jean Fecaloma me adotaram depois que eu já tinha caminhado bastante no trabalho. Ficou legal.

ANA > Como geógrafo, destacaria algo da obra dele muito atual para os dias de hoje?

Fabíola < Sim, ele adiantou bastante coisa sobre a ecologia, no sentido de esmiuçar a relação predatória da sociedade com a natureza, sobre a crítica à exploração dos animais (era vegetariano), ao Estado, entendia a geografia como uma ciência socioespacial, sem separar a humana da física e algumas coisas de Geologia. Encontrei um autor que afirma, baseado em documentos do final do século XIX e início do XX, que a Teoria da Deriva Continental é dele, e outro, que coloca Reclus como o primeiro geógrafo que traz a dialética para a análise geográfica.

ANA > Por um certo período Reclus manteve um espírito religioso, protestante, não?

Fabíola < Ah sim, seu pai era pastor. Élisée e Elie -- seu irmão mais velho e mais próximo --, tentaram estudar para seguir os passos do pai. Não deu certo porque acabaram sendo expulsos da escola por suas idéias republicanas. (risos) Élisée desistiu de ser pastor, segundo Beatrice Giblin (uma biógrafa bem boa), quando estava nos EUA e viu a igreja apoiar a escravidão. Mas dá prá perceber que ele tem um lance com a ética e com a moral que parecem mesmo um pouco religiosos.

ANA > Reclus viajou por alguns países da América Latina, inclusive o Brasil. O que ele veio fazer aqui? (risos)

Fabíola < Tem um texto muito legal do Milton, do Rio de Janeiro, na Letra Livre que fala bastante da visita de Reclus ao Brasil (LOPES, Milton. Elisée Reclus e o Brasil. in: Letra Livre: Revista de cultura libertária, arte e literatura. Num. 44, Ano 11. Rio de Janeiro, 2006), que conta um pouco das ligações entre a Maria Lacerda e sua escola com Élisée.

Ele veio primeiro prá América quando era novinho ainda e depois voltou para terminar a parte desse continente do Homem e a Terra ou da Nova Enciclopédia Universal, não me lembro agora.

ANA > Suas idéias não têm nenhuma influência no mundo acadêmico brasileiro?

Fabíola < Meu, se tem não me contaram. (risos) Que eu saiba, na Geografia, só o Manuel Correia de Andrade e o Yves Lacoste discutem o trabalho de Reclus com seriedade. Tem alguma coisa na área de antropologia e ecologia também.

O que eu percebi é que Reclus era importante na época, com trabalhos inusitados como livros de geografia infantis, enciclopédias vendidas em fascículos baratos e até alguma coisa em braile, mas depois de sua morte, pouca luz foi jogada em suas idéias.

Outra coisa interessante é que muita gente lê o Kropotkin e pensa que ele e o Reclus escreveram sobre a mesma coisa e do mesmo jeito. Eu acho as abordagens bem diferentes, apesar, é claro, de terem um montão de coisas em comum. Mas de uma maneira geral, pouca coisa deles ficaram na universidade.

ANA > Acredita que isso se deve ao grande preconceito que há na academia com o anarquismo?

Fabíola < O argumento mais ouvido (na Geografia da USP, que não tem tradição de estudos libertários) é o de que não existem produções científicas respeitáveis que trazem a perspectiva anárquica de análise. Pode até não ser preconceito, mas que parece, parece, né? (risos)

Mas isso está mudando, hoje em dia já existem grupos de estudo sobre o assunto e professores que assumem linhas de pensamento libertárias nos conteúdos próprios da Geografia. Tá, tô exagerando, na verdade eu só conheço a professora Valéria de Marco.

Minha primeira experiência séria de discussão sobre o anarquismo na USP foi na apresentação da minha dissertação, mas eu não sou parâmetro, eu não me apropriei dos espaços da universidade o quanto poderia, e é muito provável que existam grupos de alunos que se interessam e pesquisam o assunto há tempos dentro da FFLCH.

Esses dias recebi um e-mail de um grupo de estudos em formação sobre anarquismo e geografia lá no Ay Carmela, em São Paulo.

ANA > No meio anarquista sinto que existe também um certo desconhecimento sobre Reclus, suas idéias... Pouca gente sabe ou leu suas obras infantis...

Fabíola < Sério? Eu conheço e junto material nas [revistas] "Libertárias" e "Letras Livres" da vida sobre ele faz um tempão. Não tinha percebido isso.

ANA > E a sua dissertação pode se transformar num livro?

Fabíola < Puxa, nunca tinha pensado nisso de verdade. Será que rola? (risos)

Nenhum comentário:

Postar um comentário