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sábado, 28 de agosto de 2010

vida & obra

SEGUNDA-FEIRA, 15 DE MARÇO DE 2010

Élisée Reclus: há 180 anos..

por H. Hidalgo

Estes olhos claros que nos olham do papel são de Élisée Reclus, geógrafo e anarquista, nascido em Sainte Foy la Grande (Gironda, Francia) em 15 de março de 1830 e morreu em Thourout, próximo a Bruxelas, em 4 de julho de 1905.


Geógrafo e anarquista são palavras que em uma época passada, mas não tão distante, teriam um significado muito distinto ao que geralmente damos em nossos dias. Agora a geografia foi substituída pelo turismo, e em lugar de viajar para aprender (ou melhor, para desaprender tanta mudez), uma viajem de quilômetros é como atravessar uma porta, só para mudar a paisagem, e não altera senão levemente seus costumes.

Hoje o anarquismo é para muitos a desordem, desrespeito, indisciplina ou bagunça, quando para Reclus era nem mais nem menos que
“a mais alta expressão da ordem”. Que difícil é agora falar de algumas coisas! Para o autor de uma Geografía que considera os seres humanos com relação com o meio que os sustenta, a terra é a casa onde vivem os homens, e os homens são todos irmãos, livres e iguais, donos dos mesmos direitos; todos caminhamos sob um mesmo sol e nosso sangue é igualmente bombeado por corações.

Os pais de Reclus tiveram 14 filhos, dos quais sobreviveram 11. O pai era pastor protestante e explicaria a sua numerosa prole coisas semelhantes, ou não, ainda que em sua concepção do mundo Deus ocupava obviamente o lugar principal. Teve grande influência sobre seus filhos: esses admiravam sua sinceridade e sua generosidade de homem bom, mas ao mesmo tempo rechaçavam a fé cega que depositava nas sagradas escrituras...

Muitas idéias estavam mudando nessa época -- Darwin formula em 1859 sua teoria da evolução, que estava elaborando desde 1837 --, e sem dúvida o pastor Reclus agarrou-se a sua tradição bíblica e não via descobrimentos que a questionavam como mais que uma armadilha malígna. Paul, sobrinho de Élisée, atribui a rigidez religiosa do pai a orientação da maioria dos filhos para o estudo da ciência. Frente à abusiva manutenção do statu quo por parte de toda autoridade, o desenvolvimento científico da segunda metade do século 19 abria uma esperança real na erradicação da miséria, das doenças e das desigualdades.

Elie, o irmão maior foi o guia e o grande amigo de Élisée; juntos fugiram uma vez da faculdade para conhecer o mar. Elisée decide tornar-se geógrafo durante uma viagem que realiza caminhando desde berlin, onde participava dos cursos de Karl Ritter, discípulo de Humboldt -- até sua casa de Orthez em companhia de Elie, com quem se uniu em Estrasburgo, e de um cachorrinho que não os abandonou todo o caminho.

Em Montaunban ambos haviam começado a participar da política: eram os dias prévios da revolução de 48 que traria a Segunda República. Em 1851, como conseqüência do golpe de estado de Napoleón III, os dois irmãos tiveram que se refugiar em Londres. De Londres Élisée vai para a Irlanda, onde dirige uma exploração agrária, e só um ano depois embarca para América. Em Nova Orleans se emprega como educador dos filhos do dono de uma plantação, ainda que não fique muito tempo nesse cargo: de um lado não admite o regime escravista, ainda vigente, e por outra, ao que parece, foge de uma das suas jovens pupilas, que desejava convertê-lo em esposo.

A passagem de Reclus Sierra Nevada de Santa Marta, em Nueva Granada (a atual Colômbia), seu destino seguinte, onde chegou com o propósito de fundar uma colônia libertária, e nos deixa a bela crônica em que detalha essa sua experiência frustrada. Élisée retorna a França -- a pedido de Elie, que pagou sua passagem -- doente e empobrecido, mas pouco tempo depois o encontramos de novo em marcha, convertido já em geógrafo e escrevendo para as “Guías del Viajero Joanne” da revista Hachette.

Os grandes divulgadores na Espanha da obra de Reclus foram Francisco Ferrer, fundador da escola moderna, e Vicente Blasco Ibáñez. De alguma maneira, o escritor valenciano deve ter vistoem Reclus um modelo da vida “enérgica e impetuosa” que desejava para si e que tratou de cumprir com seus projetos de colonias agrícolas na Patagonia argentina e com grandes viagens que empreendeu ao redor do mundo.

Em 1869 Reclus publica sua História de um riacho (L'histoire d'un ruisseau) pela casa Hetzel, editora por ocasião as novelas de Julio Verne. Ambos foram escritores contemporâneos: Verne naceu apenas dois anos antes e os dois morreram no mesmo ano. Sem dúvida se conheceram, e sabe-se que o novelista, que apenas produziu na França, utilizou frequentemente os estudos geográficos de Reclus quando quis descrever os cenários de suas histórias aventurescas e acrescentar verossemelhança a um relato com dados científicos minunciosamente registrados por um geógrafo.

A Geografía Universal de Reclus constava com 19 volumes e contou com muitos colaboradores. O principe Piotr Kropotkin se encarregou da parte russa. No prólogo a História de uma montanha conta que em uma ocasião perguntou a seu amigo – pensando sobre algumas pinturas que havia contemplado em El Prado – porque o que é mais belo vive durante séculos?, e Reclus o contestou: “O belo é uma idéia pensada em seus detalhes”. Entretanto em uma época que haviam no mundo zonas em branco, inexploradas, Élisée Reclus tratou de completar o quebra-cabeça oferecendo croquis e mapas sobre grupos humanos, vegetação, clima, acontecimentos e relacionando todo o resto.

A história do infinito está contada na gota de água. A vida de Reclus está marcada por mudanças grandes ou pequenas, no ambito público ao privado, por mudanças de escala e perspectiva. Em 1870, ao estourar a guerra franco-prusiana, se alistou na seção aeronáutica da Guarda Nacional que dirigia seu amigo Nadar, pionero da fotografia e das viagens no mundo e amigo também de Verne, a quem serviu de modelo para a quien sirvió de modelo para produzir o Da Terra à Lua. Assim como Elie, que foi nesse período diretor da Biblioteca Nacional, Élisée teve uma destacada participação na Comuna de París, o que o fez viver muitos anos exilado na Suíça. Em 1894 fixou na Bélgica sua ultima casa: alí ministrou aulas na Universidade Nova de Bruxelas e promoveu com seus recursos um Instituto de Geografia.

Paul Reclus, o filho de Elie, viveu muito próximo ao geógrafo e foi seu ajudante nos últimos anos. Em um texto esboça um perfil já não de um personagem público nem de sábio, mas apenas de uma pessoa de chinelos:

“Lembro de Élisée sentado em seu escritório. Se passava o tempo entoando baixinho uma canção que parecia ser essencial para a redação de sua prosa. (…) Não corrigia muito seus textos. Um vez havia tido a idéia, sabia transcreve-la em palavras facilmente. Trabalhava com uma grande constância; sua meta era ‘cada dia uma página’. Podia escrever, com lápis, nos lugares menos comuns: quando o trem parava, na sala de espera de uma estação, no canto do balcão de uma taberna. Levava em seu bolso, organizada como a cartucheira de um soldado caucasiano, toda uma parafernália de diversos lápis. Sua memória era prodigiosa: para comprovar um dado se levantava da mesa, anotava o livro exato, o abria na página desejada e em seguida continuava escrevendo. (…) Era um excelente caminador*. Sua filha conta como ele gostava de jogar esconde-esconde com seus filhos e subir nas árvores quando via que poderia ser descoberto. Não podia ficar muito tempo sem praticar exercício físico; já cinquentão, assistiu uma aula de ginástica com os futuros maridos de suas filhas Régnier e Cuisinier e comigo. Viu Régnier dando um perigoso salto no trampolin e ele, muito impressionado, em seguida quis repetir o mesmo”.

Para a Exposição Universal de Paris de 1889 Reclus projetou um globo terráqueo de 40 metros de circunferência; um sonho que não chegou a realizar-se: o mundo ao alcance de um olhar. Já não existem os olhos tão azuis como esse globo, nem o corpo pequeno que foi fazendo-se mais e mais pequeno até desaparecer completamente. Élisée está enterrado junto a Elie em Ixelles (Bruxelas), sob uma laje simples ligada a parede do cemitério em que aparecem gravados os dois nomes e as datas correspondentes.

Tão pouco existem hoje, por uma fatalidade, muitos dos documentos e planos que o geógrafo foi reunindo ao longo de toda uma vida de trabalho. Em 1923 um sábio japonês, Mr. Ishimoto, quis abrir em Tokio um Instituto de Geografía Élisée Reclus. A biblioteca foi embalada e enviada para lá; as caixas estavam no porto de Yokohama esperando para serem desembarcadas quando ocorreu o terrível terremoto que lembram as enciclopédias: o incêndio provocou o afundamento do barco com todo seu conteúdo.

Apesar dessas perdas, o nome de Reclus segue sendo lembrado por leitores de muitos países e transmitido de pais para filhos. Os mais jovens podem chegar a conhece-lo visitando alguns lugares e por diferentes publicações que ainda hoje são acessíveis. Melhor que isso, vale a pena sair ao campo um dia de sol e seguir o rastro de água, seguir o rio em busca de sua fonte, sentir o ar na cara, sentir-se parte do mundo e desejar compartilhar isso com os outros.

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